A SAGA DO ESPETÁCULO “BAR CABOCLO”
Dia primeiro de
julho, estive no Teatro das Bacabeiras para apreciar mais uma vez, a última
versão do espetáculo “Bar Caboclo” do Grupo Língua de Trapo, que conta com 27
anos de jornada, desde sua primeira apresentação.
O espetáculo vem
sendo apresentado há vinte e sete anos e conta com diversas adaptações, tendo
em vista seu próprio sustento e sua sobrevivência enquanto obra artística.
Nesse ínterim, atravessou calmarias e maremotos, aclives e declives, invernos e
verões, respectivamente. Isto significa dizer que, para cada momento histórico
social e suas mais variadas transformações, o Grupo conseguiu adaptar a lente
do seu telescópio para melhor atender aos anseios do público.
A saga do espetáculo
“Bar Caboclo” inicia sua primeira versão, com um espetáculo mais original em
função de pesquisa realizada sobre a existência de um antigo bar que realmente
existiu na década de 1960 e que funcionava no canal da Mendonça Júnior, no centro
da cidade de Macapá. O local se tornou famoso em função de atender barqueiros
que aportavam nas docas da cidade, que na época situava-se ao sopé da Fortaleza
de São José. Ponto de encontro dos barqueiros, que se empenhavam em atrair as
prostitutas do lugar.
Portanto, na sua
gênese, era um espetáculo que se preocupava muito mais em revelar uma questão
histórica e antropológica, mesmo que já utilizando em seu texto, palavras
usadas cotidianamente pela camada mais baixa da sociedade. Vocabulário este, que
não dominava completamente o texto, como acontece na sua última versão. Em seus
primórdios o Grupo Língua de Trapo fazia uso do teatro de sombras na encenação,
o que gerava grande plasticidade nas cenas.
Quando das
primeiras apresentações, o texto não enaltecia heróis como é de costume, mas
revelava a vida de pessoas simples, quietas e discriminadas pela sociedade,
como: pobres, prostitutas, lésbicas, loucas, gays, gigolôs, anciãos, idosos, crianças
e negros, deixando reflexões diante do público em relação a revelar, mostrar e
traduzir para a plateia, questões sociais sobre esses guetos sociais e essas
minorias excluídas da sociedade contemporânea. Havia no enredo a personagem
Chicona, que era um exemplo típico de personagem que além de prostituta, era
anciã, gorda, pobre, negra e personagem viva, concreta e
significante representativa das minorias.
Dessa forma, o
espetáculo, paralelo ao texto, se mostrava mais preocupado em refletir, do que
apenas mostrar esses personagens, sem fomentar nenhuma consciência da situação
social deles próprios, como acontece na encenação mais atual. O espetáculo
trazia à tona personagens que a sociedade mais prefere ocultar a buscar
soluções evidentes para esses problemas.
Naquele momento
inicial, o Grupo Língua de Trapo, aparentemente tendo por base o gênero comédia,
nos trazia à cena discussões relacionadas às questões sociais e antropológicas
referentes à inclusão social. Os personagens estavam em cena, paralelamente às
reflexões cognitivas de discernimento da própria encenação em relação aos
personagens frente ao público. Na primeira geração de atores, o espetáculo
voltava-se para se preocupar com questões relacionadas à fatos históricos e
culturais, num binômio do tragicômico e discriminação social. De fato,
infelizmente esta relação já não mais existe. Os personagens estão lá, por
estar, para fazer rir a plateia em função do básico da comédia que é a crítica
ao vício e a exaltação à virtude.
Por outro lado, a
versatilidade do espetáculo ao longo dos anos, tem se ramificado e
redimensionado em vários caminhos diferentes e isto nos leva a compreender na
prática o dinamismo, a transformação, a criação, o ir e vir constante da
cultura, revelado no seu mais profundo hibridismo. Não fosse isto, possivelmente
o espetáculo, não mais estaria em cartaz.
Ao longo dos anos
o espetáculo foi se modificando e nesse movimento centrífugo, foi se deslocando
do seu próprio eixo para suas arestas. Nesta relação intrínseca, esqueceu seu
objetivo inicial, transformando-se num besteirol cômico com linguagem
ordinária, elementar e rudimentar. O texto que possuía enredo e carpintaria
teatral virou novela com capítulos, com mescla de revista e teatro rebolado,
com o principal intuito de fazer o público delirar de risos e gargalhadas.
Tanto é que hoje, qualquer personagem pode visitar o Bar Caboclo. A peça passou
a funcionar como um programa de humor em que os personagens passam por ela e
facilmente se encaixam nas sequencias dos quadros, sem nenhum prejuízo ao tema
proposto pela encenação nem ao roteiro previamente estabelecido.
Tendo como ponto
de partida, sua última versão na contemporaneidade, denominado espetáculo “Bar
Caboclo na Crise”, enquanto que por um lado, evoca novo elenco, mantém por
outro lado, alguns atores tradicionais que há tempo vêm dividindo a cena no
referido espetáculo. Se por um lado, boa parte do elenco funciona como
figurantes durante todo o desenrolar da peça, dois personagens garantem o básico
necessário para manter os elementos essenciais e fiéis ao espetáculo.
Há uma relação de
palco muito próxima, equilibrada e simétrica entre “Veruska” interpretada pelo
ator Jackson Amaral e “Caluda”, interpretada pela atriz Núbia Oliveira. São
esses dois atores que representam a mola mestra da peça, e demonstram que a
cadeia posturo-mimo-gestual se faz presente e a dêixis se mostra completa. Incomensuravelmente,
eles fazem a peça acontecer. São os principais responsáveis em manterem a peça
digna de aplausos, aclamação e entusiasmo do público. Aqui, o ator Jô
Cabeleireiro também merece destaque por sua ativa participação em cena. São
artistas afinados e conectados um ao outro, principalmente em função da
experiência e da tradição que trazem consigo, visto que trabalham juntos há
vários anos, com total domínio do palco, improvisações e relação estreita com a
plateia. Isto fica explícito e muito claro no desenrolar das cenas.
Em sua versão contemporânea, tanto o texto
como a encenação deixaram de ser primordiais para o espaço físico do bar,
alicerce fundamental, que era defendido resistentemente pelo personagem “Seu
Chico”, outrora interpretado pelo ator Alcemir Araújo, então proprietário do famoso
prostíbulo. Sem o referido personagem, o espaço físico do bar ficou a ver
navios, sem proteção, sem um comandante em chefe que o proteja e o defenda,
significando quase que apenas uma imagem no aspecto cenográfico. Não há hoje,
um personagem que mantenha uma postura defensiva em relação ao bar. Nos tempos
da globalização, o bar foi inexoravelmente terceirizado.
Nesta última versão,
a mise en scène, de Disney Silva, busca mesclar quadros que muitas vezes não se
coadunam com o texto e a encenação como um todo. Caso específico é o quadro da entrada da
personagem “Dilma”, que foge completamente do ritmo da peça deixando os atores totalmente
indecisos. Já com mais de uma hora de espetáculo, nesse momento o ritmo cai de
forma devastadora. E é nessa ocasião que algumas pessoas começam a se
desinteressar e a sair do teatro. A peça deixou de se fundamentar no Bar
Caboclo para se transformar em quadros humorísticos, como se fora teatro de
revista, utilizando-se de músicas para fazer a inter-relação entre os demais quadros.
Todavia, percebe-se
grande hibridismo no texto espetacular, fato que vem sendo realizado ao longo
de duas décadas e meia pelo grupo. Não desejo aqui, colocar em xeque a
encenação! Salienta-se a persistente contribuição do Grupo Língua de Trapo, não
só com este espetáculo, entre muitos outros já montados pela trupe. Faz-se
necessário compreender que nessas últimas décadas é um dos únicos, senão o
único Grupo Teatral em nossa Terra que consegue abarrotar o Teatro das
Bacabeiras, levando um público muito diverso e ávido de cultura. Quando a peça
entra em cartaz, sempre tem uma plateia que é fiel ao trabalho do grupo. A saga
e a trajetória do “Bar Caboclo” estão consumadas no que hoje o grupo apresenta
em cena. Talvez, quem sabe? Se o mesmo não tivesse seguido esta trajetória, não
se sabe ao certo se o espetáculo existiria na contemporaneidade!