Contatos

palhanojp@gmail.com - palhano@unifap.br

segunda-feira, 25 de julho de 2016

A SAGA DO ESPETÁCULO “BAR CABOCLO”

     Dia primeiro de julho, estive no Teatro das Bacabeiras para apreciar mais uma vez, a última versão do espetáculo “Bar Caboclo” do Grupo Língua de Trapo, que conta com 27 anos de jornada, desde sua primeira apresentação.
     O espetáculo vem sendo apresentado há vinte e sete anos e conta com diversas adaptações, tendo em vista seu próprio sustento e sua sobrevivência enquanto obra artística. Nesse ínterim, atravessou calmarias e maremotos, aclives e declives, invernos e verões, respectivamente. Isto significa dizer que, para cada momento histórico social e suas mais variadas transformações, o Grupo conseguiu adaptar a lente do seu telescópio para melhor atender aos anseios do público.
     A saga do espetáculo “Bar Caboclo” inicia sua primeira versão, com um espetáculo mais original em função de pesquisa realizada sobre a existência de um antigo bar que realmente existiu na década de 1960 e que funcionava no canal da Mendonça Júnior, no centro da cidade de Macapá. O local se tornou famoso em função de atender barqueiros que aportavam nas docas da cidade, que na época situava-se ao sopé da Fortaleza de São José. Ponto de encontro dos barqueiros, que se empenhavam em atrair as prostitutas do lugar.
     Portanto, na sua gênese, era um espetáculo que se preocupava muito mais em revelar uma questão histórica e antropológica, mesmo que já utilizando em seu texto, palavras usadas cotidianamente pela camada mais baixa da sociedade. Vocabulário este, que não dominava completamente o texto, como acontece na sua última versão. Em seus primórdios o Grupo Língua de Trapo fazia uso do teatro de sombras na encenação, o que gerava grande plasticidade nas cenas.
     Quando das primeiras apresentações, o texto não enaltecia heróis como é de costume, mas revelava a vida de pessoas simples, quietas e discriminadas pela sociedade, como: pobres, prostitutas, lésbicas, loucas, gays, gigolôs, anciãos, idosos, crianças e negros, deixando reflexões diante do público em relação a revelar, mostrar e traduzir para a plateia, questões sociais sobre esses guetos sociais e essas minorias excluídas da sociedade contemporânea. Havia no enredo a personagem Chicona, que era um exemplo típico de personagem que além de prostituta, era anciã, gorda, pobre, negra e personagem viva, concreta e significante representativa das minorias.
     Dessa forma, o espetáculo, paralelo ao texto, se mostrava mais preocupado em refletir, do que apenas mostrar esses personagens, sem fomentar nenhuma consciência da situação social deles próprios, como acontece na encenação mais atual. O espetáculo trazia à tona personagens que a sociedade mais prefere ocultar a buscar soluções evidentes para esses problemas.
     Naquele momento inicial, o Grupo Língua de Trapo, aparentemente tendo por base o gênero comédia, nos trazia à cena discussões relacionadas às questões sociais e antropológicas referentes à inclusão social. Os personagens estavam em cena, paralelamente às reflexões cognitivas de discernimento da própria encenação em relação aos personagens frente ao público. Na primeira geração de atores, o espetáculo voltava-se para se preocupar com questões relacionadas à fatos históricos e culturais, num binômio do tragicômico e discriminação social. De fato, infelizmente esta relação já não mais existe. Os personagens estão lá, por estar, para fazer rir a plateia em função do básico da comédia que é a crítica ao vício e a exaltação à virtude.
     Por outro lado, a versatilidade do espetáculo ao longo dos anos, tem se ramificado e redimensionado em vários caminhos diferentes e isto nos leva a compreender na prática o dinamismo, a transformação, a criação, o ir e vir constante da cultura, revelado no seu mais profundo hibridismo. Não fosse isto, possivelmente o espetáculo, não mais estaria em cartaz.
     Ao longo dos anos o espetáculo foi se modificando e nesse movimento centrífugo, foi se deslocando do seu próprio eixo para suas arestas. Nesta relação intrínseca, esqueceu seu objetivo inicial, transformando-se num besteirol cômico com linguagem ordinária, elementar e rudimentar. O texto que possuía enredo e carpintaria teatral virou novela com capítulos, com mescla de revista e teatro rebolado, com o principal intuito de fazer o público delirar de risos e gargalhadas. Tanto é que hoje, qualquer personagem pode visitar o Bar Caboclo. A peça passou a funcionar como um programa de humor em que os personagens passam por ela e facilmente se encaixam nas sequencias dos quadros, sem nenhum prejuízo ao tema proposto pela encenação nem ao roteiro previamente estabelecido.
     Tendo como ponto de partida, sua última versão na contemporaneidade, denominado espetáculo “Bar Caboclo na Crise”, enquanto que por um lado, evoca novo elenco, mantém por outro lado, alguns atores tradicionais que há tempo vêm dividindo a cena no referido espetáculo. Se por um lado, boa parte do elenco funciona como figurantes durante todo o desenrolar da peça, dois personagens garantem o básico necessário para manter os elementos essenciais e fiéis ao espetáculo.
     Há uma relação de palco muito próxima, equilibrada e simétrica entre “Veruska” interpretada pelo ator Jackson Amaral e “Caluda”, interpretada pela atriz Núbia Oliveira. São esses dois atores que representam a mola mestra da peça, e demonstram que a cadeia posturo-mimo-gestual se faz presente e a dêixis se mostra completa. Incomensuravelmente, eles fazem a peça acontecer. São os principais responsáveis em manterem a peça digna de aplausos, aclamação e entusiasmo do público. Aqui, o ator Jô Cabeleireiro também merece destaque por sua ativa participação em cena. São artistas afinados e conectados um ao outro, principalmente em função da experiência e da tradição que trazem consigo, visto que trabalham juntos há vários anos, com total domínio do palco, improvisações e relação estreita com a plateia. Isto fica explícito e muito claro no desenrolar das cenas.
       Em sua versão contemporânea, tanto o texto como a encenação deixaram de ser primordiais para o espaço físico do bar, alicerce fundamental, que era defendido resistentemente pelo personagem “Seu Chico”, outrora interpretado pelo ator Alcemir Araújo, então proprietário do famoso prostíbulo. Sem o referido personagem, o espaço físico do bar ficou a ver navios, sem proteção, sem um comandante em chefe que o proteja e o defenda, significando quase que apenas uma imagem no aspecto cenográfico. Não há hoje, um personagem que mantenha uma postura defensiva em relação ao bar. Nos tempos da globalização, o bar foi inexoravelmente terceirizado.
     Nesta última versão, a mise en scène, de Disney Silva, busca mesclar quadros que muitas vezes não se coadunam com o texto e a encenação como um todo.  Caso específico é o quadro da entrada da personagem “Dilma”, que foge completamente do ritmo da peça deixando os atores totalmente indecisos. Já com mais de uma hora de espetáculo, nesse momento o ritmo cai de forma devastadora. E é nessa ocasião que algumas pessoas começam a se desinteressar e a sair do teatro. A peça deixou de se fundamentar no Bar Caboclo para se transformar em quadros humorísticos, como se fora teatro de revista, utilizando-se de músicas para fazer a inter-relação entre os demais quadros.

     Todavia, percebe-se grande hibridismo no texto espetacular, fato que vem sendo realizado ao longo de duas décadas e meia pelo grupo. Não desejo aqui, colocar em xeque a encenação! Salienta-se a persistente contribuição do Grupo Língua de Trapo, não só com este espetáculo, entre muitos outros já montados pela trupe. Faz-se necessário compreender que nessas últimas décadas é um dos únicos, senão o único Grupo Teatral em nossa Terra que consegue abarrotar o Teatro das Bacabeiras, levando um público muito diverso e ávido de cultura. Quando a peça entra em cartaz, sempre tem uma plateia que é fiel ao trabalho do grupo. A saga e a trajetória do “Bar Caboclo” estão consumadas no que hoje o grupo apresenta em cena. Talvez, quem sabe? Se o mesmo não tivesse seguido esta trajetória, não se sabe ao certo se o espetáculo existiria na contemporaneidade! 

segunda-feira, 4 de julho de 2016

ENSAIO A RICARDO III DE SHAKESPEARE


     “O inverno do nosso desgosto se fez verão glorioso”. Estas são as palavras faladas quando o personagem Ricardo III imagina perspectivas concretas de sua futura coroação. São metáforas, verdadeiras e atuais. Refletem e conotam ao mesmo tempo: demagogia, egoísmo, despotismo, egocentrismo e poder absoluto! Frase célebre que significa, em um só tempo: passado, presente e futuro. É o reflexo das irreflexões humanas. É a síntese; o resumo do próprio homem enquanto ser existencial, em busca de sua verdade.
     É no Renascimento onde podemos encontrar um dos dramaturgos mais importante da Europa. Especificamente na Inglaterra, sob o período Elisabetano, viveu Williams Shakespeare, de 1564 a 1616. Nesse período a Inglaterra encontrava-se em crescimento econômico muito promissor. A rainha Elizabeth havia conquistado a hegemonia da sociedade inglesa, que, por sua vez, estava submersa em suas contradições éticas, morais e sociais e mergulhada nos seus valores burgueses.
     Na pequena cidade de Stratford-on-Avon, a 80 quilômetros de Londres, Shakespeare passou boa parte de sua vida, onde estudou vários idiomas. Posteriormente, abandona a família e vai para a cidade grande (no caso Londres) onde, em poucos dias gasta suas economias nos bares e teatros da cidade. Aliás, esse foi praticamente o grande universo de Shakespeare: Stratford-Londres Stratford.
     Diante de um teatro (provavelmente o Globe Theatre), durante as apresentações, sem mais poder assisti-las, e para sua sobrevivência, passa a guardar e cuidar de cavalos do público presente. O certo é que após um certo período, ele passa a trabalhar nesse mesmo teatro. Inicialmente como tradutor de textos já que sabia vários idiomas, (trabalho que lhe deu suporte significante em sua futura obra, tendo em vista que à medida que fazia as traduções, paralelamente, ia compreendendo a carpintaria teatral dos referidos textos).
     Com o seu crescente conhecimento, conseguiu uma vaga como ator e nesse mesmo teatro se tornaria famoso ao montar seus próprios textos. No Globe Theatre, as peças de Shakespeare foram encenadas a partir do ano de 1599. Como dramaturgo, foi de encontro a paradigmas como as unidades aristotélicas, criando tragédias que não seguiam as unidades de tempo, lugar e ação. Trouxe para o palco questões éticas e morais da sociedade inglesa da época.
     Uma das questões fundamentais de sua obra é que ao invés da tragédia grega que enfocava a luta do homem com os deuses; com um toque metafórico, sua obra revelou a luta do homem contra o próprio homem. O que ele levou para o palco, já não eram os deuses, mas a crescente burguesia inglesa lutando contra si, em busca de resolver seus próprios problemas. Romeu e Julieta é um bom exemplo do que se trata aqui.
     O existencialismo humano e uma das questões fundamentais que denota a atualidade da obra de Shakespeare. Esta é uma das razões que faz com que sua obra seja estudada e reverenciada até nossos dias e que seus textos sejam geralmente montados em latitudes totalmente diferentes, com: “Hamlet”, “Macbeth”, entre outros.
     “Ricardo III”, que é o que mais nos interessa neste momento, já foi encenado infinitas vezes nesses últimos séculos. Para imaginarmos a grandiosidade da obra desse autor, basta dizer que este último texto já rendeu discussões, teses, estudos diversos, e como não poderia de ser também foi transformado em vários filmes.
     Tratando-se de cinema, quantos cineastas transformaram em filme a obra de Shakespeare? Sabe-se que não foram poucos os filmes; não só de sua obra, mas também sobre sua vida. É oportuno enfocar que “Ensaio Sobre Ricardo II” de Al Pacino é um deles.
     Este filme, nos leva a uma porta aberta à medida que não se resume apenas como um filme qualquer. É um documentário, é teatro no cinema, são pessoas anônimas que estão na rua e que contribuem com vários pontos de discussão (mudanças) para que possamos refletir objetivamente sobre o autor, sem esquecer a obra, “Ricardo III” que é o tema do filme.
     A todo tempo, o referido filme se transforma num jogo; um jogo em que os participantes refletem sobre Shakespeare, deixando sempre um espaço vazio, para novas reflexões. É o cinema buscando preencher seus espaços, seus meta-espaços. O enfoque é um grupo de teatro, mas a arte é cinema; é cinematográfica. Neste caso, não vamos ao cinema para ver “Ricardo III”, mas para conhecer Shakespeare e consequentemente, pensar “Ricardo III”. Com esse viés, Al Pacino põe em discussão uma das obras mais importantes do autor renascentista.
     No filme, um grupo de teatro decide montar “Ricardo III”. Essa é a trama, que não se deixa cair nos fios do tempo, buscando pesquisar para compreender, e poder explicitar mais profundamente para o espectador, a obra do autor.
     Não se trata de cinema pelo cinema, Al Pacino faz do seu “Ricardo III”, um filme que, antes de se preocupar com a montagem, seu objetivo foi estudar o autor. E não só isso, ele não se contentou que seus espectadores entendessem apenas o tema, no caso “Ricardo III”, mas se preocupassem também com o dramaturgo. Portanto, é de fundamental importância esse ângulo “Paviniano”, quando nos referimos à arte como um universo macro. Assim, Al Pacino, em “Ricardo III”, tenta preencher todos os espaços possíveis no âmbito do cinema, quer dizer, no âmbito do filme.

     No final dessas elementares palavras, poderíamos imaginar a seguinte frase: “Um cavalo... Meu reino por um cavalo...”, dita e redita simbolicamente por um homem (político, empresário, milionário, etc.), neste século XXI, num momento difícil de sua existência pessoal; da mesma forma e no mesmo tom, como falou Ricardo III, há cinco séculos.